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sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A nossa esperança nas mãos seguras de Deus

PAPA FRANCISCO
MEDITAÇÕES MATUTINAS NA SANTA MISSA CELEBRADA
NA CAPELA DA DOMUS SANCTAE MARTHAE
A nossa esperança nas mãos seguras de Deus

Publicado no L'Osservatore Romano, ed. em português, n. 46 de 14 de Novembro de 2013

Nas mãos de Deus. Nelas está a nossa segurança: são mãos cobertas de chagas por amor, que nos guiam pelos caminhos da vida e não da morte, para onde, ao contrário, nos conduz a inveja. Foi este o sentido da reflexão proposta pelo Papa Francisco na manhã de terça-feira, 12 de Novembro, durante a missa celebrada na capela de Santa Marta.
A primeira leitura, observou o Santo Padre introduzindo a homilia, recorda que Deus «criou o homem para a incorruptibilidade» (Sb 2, 23-3, 9). Ele «criou-nos e é o nosso Pai. Fez-nos bons como Ele, mais bonitos do que os anjos; maiores do que os anjos. Mas, por inveja do diabo, a morte entrou no mundo».
Na realidade, prosseguiu o bispo de Roma, «todos experimentamos a morte». Como se explica? «O Senhor — respondeu — não abandona a sua obra», como explica o texto do livro da Sabedoria: «As almas dos justos, ao contrário, estão nas mãos de Deus». Todos «devemos passar pela morte. Mas há uma diferença entre passar por esta experiência através da pertença às mãos do diabo ou pelas mãos de Deus».
Deus não nos abandonou. Na Bíblia lê-se o que ele diz ao seu povo: «Caminhei contigo». Deus comporta-se — frisou o Papa — como «um pai que leva o filho pela mão. São as mãos de Deus que nos acompanham no caminho». O Pai ensina-nos a caminhar, a ir «pela estrada da vida e da salvação». «São as mãos de Deus que nos acariciam no momento da dor, que nos confortam. É o nosso Pai que nos acaricia, que nos ama muito. E nestas carícias muitas vezes está o perdão». As mãos de Deus, prosseguiu o Santo Padre, «curam também os nossos males espirituais. Pensemos nas mãos de Jesus quando tocava os doentes e os curava. São as mãos de Deus. Curam-nos. Não consigo imaginar Deus que nos dá uma bofetada. Não o imagino: repreende-nos sim, porque o faz; mas nunca nos fere, jamais! Acaricia-nos. Até quando nos deve repreender, fá-lo com uma carícia, porque é Pai».
«As almas dos justos estão nas mãos de Deus», repetiu o Pontífice, concluindo: «Pensemos nas mãos de Deus que nos criou como um artesão. Deu-nos a saúde eterna. São mãos cheias de chagas. Ele acompanha-nos na estrada da vida. Confiemo-nos às mãos de Deus como uma criança se entrega às mãos do seu pai», porque são mãos seguras.
Na missa celebrada na manhã de segunda-feira, 11 de Novembro, a reflexão do Pontífice inspirou-se na leitura de um trecho do Evangelho de Lucas (17, 1-6): «Se o teu irmão cometer uma culpa, repreende-o; mas se se arrepender, perdoa-o». O mesmo Evangelho contém outro trecho no qual, frisou o Bispo de Roma, Jesus diz: «Ai daquele que causar escândalos». Jesus, explicou, «não fala de pecado mas de escândalo» e diz: «Melhor seria que lhe atassem ao pescoço uma pedra de moinho e o lançassem ao mar do que escandalizar um só destes pequeninos. Tende cuidado convosco!». Depois, o Pontífice perguntou-se: «Mas que diferença há entre pecar e escandalizar? Qual é a diferença entre cometer um pecado e fazer algo que causa escândalo e faz mal, muito mal?». A diferença, disse, é que «quem peca e se arrepende pede perdão, sente-se frágil, sente-se filho de Deus, humilha-se e pede a salvação de Jesus. Mas quem dá escândalo não se arrepende e continua a pecar e finge que é cristão». É como se levasse uma «vida dupla» e, acrescentou, «a vida dupla de um cristão faz muito mal».
«Onde há engano — comentou o Papa Francisco — não há o Espírito de Deus. Esta é a diferença entre pecador e corrupto. Quem leva uma vida dupla é um corrupto. Quem peca, ao contrário, gostaria de não pecar, mas é débil ou encontra-se numa condição na qual não pode achar uma solução mas vai ter com o Senhor e pede perdão. A este o Senhor ama, acompanha-o, está com ele. E nós devemos dizer, todos nós que estamos aqui: pecadores sim, corruptos não». Os corruptos, explicou o Papa, não sabem o que é a humildade. Jesus comparava-os com os sepulcros caiados: bonitos por fora mas dentro cheios de ossos podres. «E um cristão que se vangloria de ser cristão mas não leva uma vida cristã — frisou — é um corrupto.
Todos conhecemos alguém que «está nesta situação e sabemos — acrescentou — quanto mal fazem à Igreja os cristãos corruptos, os sacerdotes corruptos. Quanto mal fazem à Igreja! Não vivem no espírito do Evangelho, mas no espírito da mundanidade. E são Paulo diz claramente aos romanos: Não vos conformeis com este mundo (cf. Rm 12, 2). Mas no texto original é ainda mais forte: não entreis nos esquemas deste mundo, nos parâmetros deste mundo, porque são precisamente estes, esta mundanidade, que levam à vida dupla».
Na conclusão o Papa disse: «Uma podridão envernizada: esta é a vida do corrupto. E a estes Jesus não lhes chamava simplesmente pecadores. Mas dizia-lhes: hipócritas». Jesus, recordou ainda, perdoa sempre, não se cansa de perdoar. A única condição que pede é que não queiramos levar esta vida dupla: «Peçamos hoje ao Senhor que evitemos todos os enganos, que nos reconheçamos pecadores. Pecadores sim, corruptos não».
Na missa celebrada na sexta-feira, 8 de Novembro, o Papa Francisco — ao propor uma reflexão sobre a figura do administrador desonesto descrita no trecho litúrgico do Evangelho de Lucas (16, 1-8) frisou que os administradores corruptos «devotos da deusa ilegalidade» cometem um pecado grave contra a dignidade» e dão de comer aos próprios filhos «pão sujo»: a esta «astúcia mundana» deve-se responder com a «astúcia cristã» que é «um dom do Espírito Santo».
«O Senhor — disse o Papa — volta a falar-nos do espírito do mundo, da mundanidade; como age esta mundanidade e quanto é perigosa. E Jesus, precisamente ele, na oração depois da ceia da quinta-feira santa, rezava ao Pai para que os seus discípulos não caíssem na mundanidade», no espírito do mundo.
O administrador descrito na página evangélica é «um exemplo de mundanidade. Algum de vós — fez notar o Pontífice — poderá dizer: mas este homem fez o que todos fazem». Na realidade, «nem todos!»; este é o modo de agir de «alguns administradores do governo. Talvez não sejam muitos». Em suma, «é um pouco daquela atitude do caminho mais breve, mais cómodo para ganhar a vida». O Evangelho narra que o homem rico «elogiou aquele administrador desonesto». E este — comentou o Papa — «é um louvor à ilegalidade. O costume da ilegalidade é mundano e muito pecador». Certamente, é um hábito que nada tem a ver com Deus.
Com efeito, prosseguiu, «Deus deu-nos este mandamento: levar o pão para casa com o nosso trabalho honesto». Ao contrário, «este administrador dava aos seus filhos pão sujo. E os seus filhos, talvez educados em colégios caros, talvez crescidos em ambientes cultos, tinham recebido do seu pai sujidade como alimento. Porque o seu pai levando para casa pão sujo tinha perdido a dignidade. E este é um pecado grave». Talvez, especificou o Papa, «se comece com um pequeno suborno, mas é como a droga». E mesmo se o primeiro suborno é «pequeno, depois vem outro e outro ainda; e acaba-se na doença da dependência da ilegalidade».
Mas há outro caminho, o da «astúcia cristã» — «entre aspas», disse o Papa — que permite «fazer as coisas com um pouco de rapidez mas não com o espírito do mundo. O próprio Cristo o disse: astutos como as serpentes, puros como as pombas». Combinar «estas duas» realidades é «uma graça» e «um dom do Espírito Santo». Por isso, devemos pedir ao Senhor que sejamos capazes de praticar a «honestidade na vida, aquela honestidade que nos faz trabalhar com rectidão, sem entrar nesse círculo».
Deus é um pai «que não gosta de perder». Ele procura, com alegria e «com esmero de amor», as pessoas perdidas, suscitando muitas vezes «a música da hipocrisia murmuradora» dos conservadores. Foi a chave de leitura sugerida pelo Papa Francisco na homilia da missa celebrada na manhã de quinta-feira, 7 de Novembro.
O Pontífice iniciou a sua meditação descrevendo precisamente a atitude dos fariseus e dos escribas que estudavam Jesus «para compreender as suas acções», escandalizando-se com as «coisas que ele fazia. E escandalizados murmuravam contra ele: mas este homem é um perigo!». Escribas e fariseus, explicou o Santo Padre, pensavam que Jesus era um perigo. Eis porque na sexta-feira santa «pedem a sua crucificação». E ainda antes — recordou — chegaram a dizer: «É melhor que um só homem morra pelo povo e que não cheguem os romanos. Este homem é um perigo!».
O que mais os escandalizava, rematou o Papa Francisco, era ver Jesus «almoçar e jantar com os publicanos e os pecadores, falar com eles». Disto nascia a reacção: «Este homem ofende a Deus, desconsagra o ministério do profeta que é um ministério sagrado»; e «desconsagra-o para se aproximar destas pessoas».



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terça-feira, 12 de novembro de 2013

CARTA ENCÍCLICA LUMEN FIDEI - CAPÍTULO I ACREDITÁMOS NO AMOR (cf. 1 Jo 4, 16)

CAPÍTULO I
ACREDITÁMOS NO AMOR(cf. 1 Jo 4, 16)
Abraão, nosso pai na fé
8. A fé desvenda-nos o caminho e acompanha os nossos passos na história. Por isso, se quisermos compreender o que é a fé, temos de explanar o seu percurso, o caminho dos homens crentes, com os primeiros testemunhos já no Antigo Testamento. Um posto singular ocupa Abraão, nosso pai na fé. Na sua vida, acontece um facto impressionante: Deus dirige-lhe a Palavra, revela-Se como um Deus que fala e o chama por nome. A fé está ligada à escuta. Abraão não vê Deus, mas ouve a sua voz. Deste modo, a fé assume um carácter pessoal: o Senhor não é o Deus de um lugar, nem mesmo o Deus vinculado a um tempo sagrado específico, mas o Deus de uma pessoa, concretamente o Deus de Abraão, Isaac e Jacob, capaz de entrar em contacto com o homem e estabelecer com ele uma aliança. A fé é a resposta a uma Palavra que interpela pessoalmente, a um Tu que nos chama por nome.
9. Esta Palavra comunica a Abraão uma chamada e uma promessa. Contém, antes de tudo, uma chamada a sair da própria terra, convite a abrir-se a uma vida nova, início de um êxodo que o encaminha para um futuro inesperado. A perspectiva, que a fé vai proporcionar a Abraão, estará sempre ligada com este passo em frente que ele deve realizar: a fé « vê » na medida em que caminha, em que entra no espaço aberto pela Palavra de Deus. Mas tal Palavra contém ainda uma promessa: a tua descendência será numerosa, serás pai de um grande povo (cf. Gn 13, 16; 15, 5; 22, 17). É verdade que a fé de Abraão, enquanto resposta a uma Palavra que a precede, será sempre um acto de memória; contudo esta memória não o fixa no passado, porque, sendo memória de uma promessa, se torna capaz de abrir ao futuro, de iluminar os passos ao longo do caminho. Assim se vê como a fé, enquanto memória do futuro, está intimamente ligada com a esperança.
10. A Abraão pede-se para se confiar a esta Palavra. A fé compreende que a palavra — uma realidade aparentemente efémera e passageira —, quando é pronunciada pelo Deus fiel, torna-se no que de mais seguro e inabalável possa haver, possibilitando a continuidade do nosso caminho no tempo. A fé acolhe esta Palavra como rocha segura, sobre a qual se pode construir com alicerces firmes. Por isso, na Bíblia hebraica, a fé é indicada pela palavra ‘emûnah, que deriva do verbo ‘amàn, cuja raiz significa « sustentar ». O termo ‘emûnah tanto pode significar a fidelidade de Deus como a fé do homem. O homem fiel recebe a sua força do confiar-se nas mãos do Deus fiel. Jogando com dois significados da palavra — presentes tanto no termo grego pistós como no correspondente latinofidelis –, São Cirilo de Jerusalém exaltará a dignidade do cristão, que recebe o mesmo nome de Deus: ambos são chamados « fiéis ».[8] E Santo Agostinho explica-o assim: « O homem fiel é aquele que crê no Deus que promete; o Deus fiel é aquele que concede o que prometeu ao homem ».[9]
11. Há ainda um aspecto da história de Abraão que é importante para se compreender a sua fé. A Palavra de Deus, embora traga consigo novidade e surpresa, não é de forma alguma alheia à experiência do Patriarca. Na voz que se lhe dirige, Abraão reconhece um apelo profundo, desde sempre inscrito no mais íntimo do seu ser. Deus associa a sua promessa com aquele « ponto » onde desde sempre a existência do homem se mostra promissora, ou seja, a paternidade, a geração duma nova vida: « Sara, tua mulher, dar-te-á um filho, a quem hás-de chamar Isaac » (Gn17, 19). O mesmo Deus que pede a Abraão para se confiar totalmente a Ele, revela-Se como a fonte donde provém toda a vida. Desta forma, a fé une-se com a Paternidade de Deus, da qual brota a criação: o Deus que chama Abraão é o Deus criador, aquele que « chama à existência o que não existe » (Rm 4, 17), aquele que, « antes da fundação do mundo, (...) nos predestinou para sermos adoptados como seus filhos » (Ef 1, 4-5). No caso de Abraão, a fé em Deus ilumina as raízes mais profundas do seu ser: permite-lhe reconhecer a fonte de bondade que está na origem de todas as coisas, e confirmar que a sua vida não deriva do nada nem do acaso, mas de uma chamada e um amor pessoais. O Deus misterioso que o chamou não é um Deus estranho, mas a origem de tudo e que tudo sustenta. A grande prova da fé de Abraão, o sacrifício do filho Isaac, manifestará até que ponto este amor originador é capaz de garantir a vida mesmo para além da morte. A Palavra que foi capaz de suscitar um filho no seu corpo « já sem vida (…), como sem vida estava o seio » de Sara estéril (Rm 4, 19), também será capaz de garantir a promessa de um futuro para além de qualquer ameaça ou perigo (cf. Heb 11, 19; Rm 4, 21).
A fé de Israel
12. A história do povo de Israel, no livro do Êxodo, continua na esteira da fé de Abraão. De novo, a fé nasce de um dom originador: Israel abre-se à acção de Deus, que quer libertá-lo da sua miséria. A fé é chamada a um longo caminho, para poder adorar o Senhor no Sinai e herdar uma terra prometida. O amor divino possui os traços de um pai que conduz seu filho pelo caminho (cf. Dt 1, 31). A confissão de fé de Israel desenrola-se como uma narração dos benefícios de Deus, da sua acção para libertar e conduzir o povo (cf. Dt 26, 5-11); narração esta, que o povo transmite de geração em geração. A luz de Deus brilha para Israel, através da comemoração dos factos realizados pelo Senhor, recordados e confessados no culto, transmitidos pelos pais aos filhos. Deste modo aprendemos que a luz trazida pela fé está ligada com a narração concreta da vida, com a grata lembrança dos benefícios de Deus e com o progressivo cumprimento das suas promessas. A arquitectura gótica exprimiu-o muito bem: nas grandes catedrais, a luz chega do céu através dos vitrais onde está representada a história sagrada. A luz de Deus vem-nos através da narração da sua revelação e, assim, é capaz de iluminar o nosso caminho no tempo, recordando os benefícios divinos e mostrando como se cumprem as suas promessas.
13. A história de Israel mostra-nos ainda a tentação da incredulidade, em que o povo caiu várias vezes. Aparece aqui o contrário da fé: a idolatria. Enquanto Moisés fala com Deus no Sinai, o povo não suporta o mistério do rosto divino escondido, não suporta o tempo de espera. Por sua natureza, a fé pede para se renunciar à posse imediata que a visão parece oferecer; é um convite para se abrir à fonte da luz, respeitando o mistério próprio de um Rosto que pretende revelar-se de forma pessoal e no momento oportuno. Martin Buber citava esta definição da idolatria, dada pelo rabino de Kock: há idolatria, « quando um rosto se dirige reverente a um rosto que não é rosto ».[10] Em vez da fé em Deus, prefere-se adorar o ídolo, cujo rosto se pode fixar e cuja origem é conhecida, porque foi feito por nós. Diante do ídolo, não se corre o risco de uma possível chamada que nos faça sair das próprias seguranças, porque os ídolos « têm boca, mas não falam » (Sal 115, 5). Compreende-se assim que o ídolo é um pretexto para se colocar a si mesmo no centro da realidade, na adoração da obra das próprias mãos. Perdida a orientação fundamental que dá unidade à sua existência, o homem dispersa-se na multiplicidade dos seus desejos; negando-se a esperar o tempo da promessa, desintegra-se nos mil instantes da sua história. Por isso, a idolatria é sempre politeísmo, movimento sem meta de um senhor para outro. A idolatria não oferece um caminho, mas uma multiplicidade de veredas que não conduzem a uma meta certa, antes se configuram como um labirinto. Quem não quer confiar-se a Deus, deve ouvir as vozes dos muitos ídolos que lhe gritam: « Confia-te a mim! » A fé, enquanto ligada à conversão, é o contrário da idolatria: é separação dos ídolos para voltar ao Deus vivo, através de um encontro pessoal. Acreditar significa confiar-se a um amor misericordioso que sempre acolhe e perdoa, que sustenta e guia a existência, que se mostra poderoso na sua capacidade de endireitar os desvios da nossa história. A fé consiste na disponibilidade a deixar-se incessantemente transformar pela chamada de Deus. Paradoxalmente, neste voltar-se continuamente para o Senhor, o homem encontra uma estrada segura que o liberta do movimento dispersivo a que o sujeitam os ídolos.
14. Na fé de Israel, sobressai também a figura de Moisés, o mediador. O povo não pode ver o rosto de Deus; é Moisés que fala com Jahvé na montanha e comunica a todos a vontade do Senhor. Com esta presença do mediador, Israel aprendeu a caminhar unido. O acto de fé do indivíduo insere-se numa comunidade, no « nós » comum do povo, que, na fé, é como um só homem: « o meu filho primogénito », assim Deus designará todo o Israel (cf. Ex 4, 22). Aqui a mediação não se torna um obstáculo, mas uma abertura: no encontro com os outros, o olhar abre-se para uma verdade maior que nós mesmos. Jean Jacques Rousseau lamentava-se por não poder ver Deus pessoalmente: « Quantos homens entre mim e Deus! » [11] « Será assim tão simples e natural que Deus tenha ido ter com Moisés para falar a Jean Jacques Rousseau? »[12] A partir de uma concepção individualista e limitada do conhecimento é impossível compreender o sentido da mediação: esta capacidade de participar na visão do outro, saber compartilhado que é o conhecimento próprio do amor. A fé é um dom gratuito de Deus, que exige a humildade e a coragem de fiar-se e entregar-se para ver o caminho luminoso do encontro entre Deus e os homens, a história da salvação.
A plenitude da fé cristã
15. « Abraão (...) exultou pensando em ver o meu dia; viu-o e ficou feliz » (Jo 8, 56). De acordo com estas palavras de Jesus, a fé de Abraão estava orientada para Ele, de certo modo era visão antecipada do seu mistério. Assim o entende Santo Agostinho, quando afirma que os Patriarcas se salvaram pela fé; não fé em Cristo já chegado, mas fé em Cristo que havia de vir, fé proclive para o evento futuro de Jesus.[13] A fé cristã está centrada em Cristo; é confissão de que Jesus é o Senhor e que Deus O ressuscitou de entre os mortos (cf. Rm 10, 9). Todas as linhas do Antigo Testamento se concentram em Cristo: Ele torna-Se o « sim » definitivo a todas as promessas, fundamento último do nosso « Amen » a Deus (cf. 2 Cor 1, 20). A história de Jesus é a manifestação plena da fiabilidade de Deus. Se Israel recordava os grandes actos de amor de Deus, que formavam o centro da sua confissão e abriam o horizonte da sua fé, agora a vida de Jesus aparece como o lugar da intervenção definitiva de Deus, a suprema manifestação do seu amor por nós. A palavra que Deus nos dirige em Jesus já não é uma entre muitas outras, mas a sua Palavra eterna (cf. Heb 1, 1-2). Não há nenhuma garantia maior que Deus possa dar para nos certificar do seu amor, como nos lembra São Paulo (cf. Rm 8, 31-39). Portanto, a fé cristã é fé no Amor pleno, no seu poder eficaz, na sua capacidade de transformar o mundo e iluminar o tempo. « Nós conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele » (1 Jo 4, 16). A fé identifica, no amor de Deus manifestado em Jesus, o fundamento sobre o qual assenta a realidade e o seu destino último.
16. A maior prova da fiabilidade do amor de Cristo encontra-se na sua morte pelo homem. Se dar a vida pelos amigos é a maior prova de amor (cf. Jo 15, 13), Jesus ofereceu a sua vida por todos, mesmo por aqueles que eram inimigos, para transformar o coração. É por isso que os evangelistas situam, na hora da Cruz, o momento culminante do olhar de fé: naquela hora resplandece o amor divino em toda a sua sublimidade e amplitude. São João colocará aqui o seu testemunho solene, quando, juntamente com a Mãe de Jesus, contemplou Aquele que trespassaram (cf.Jo 19, 37): « Aquele que viu estas coisas é que dá testemunho delas e o seu testemunho é verdadeiro. E ele bem sabe que diz a verdade, para vós crerdes também » (Jo 19, 35). Na sua obra O Idiota, Fiódor Mikhailovich Dostoiévski faz o protagonista — o príncipe Myskin — dizer, à vista do quadro de Cristo morto no sepulcro, pintado por Hans Holbein o Jovem: « Aquele quadro poderia mesmo fazer perder a fé a alguém »;[14] de facto, o quadro representa, de forma muito crua, os efeitos destruidores da morte no corpo de Cristo. E todavia é precisamente na contemplação da morte de Jesus que a fé se reforça e recebe uma luz fulgurante, é quando ela se revela como fé no seu amor inabalável por nós, que é capaz de penetrar na morte para nos salvar. Neste amor que não se subtraiu à morte para manifestar quanto me ama, é possível crer; a sua totalidade vence toda e qualquer suspeita e permite confiar-nos plenamente a Cristo.
17. Ora, a morte de Cristo desvenda a total fiabilidade do amor de Deus à luz da sua ressurreição. Enquanto ressuscitado, Cristo é testemunha fiável, digna de fé (cf. Ap 1, 5; Heb 2, 17), apoio firme para a nossa fé. « Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé », afirma São Paulo (1 Cor 15, 17). Se o amor do Pai não tivesse feito Jesus ressurgir dos mortos, se não tivesse podido restituir a vida ao seu corpo, não seria um amor plenamente fiável, capaz de iluminar também as trevas da morte. Quando São Paulo fala da sua nova vida em Cristo, refere que a vive « na fé do Filho de Deus que me amou e a Si mesmo Se entregou por mim » (Gl 2, 20). Esta « fé do Filho de Deus » é certamente a fé do Apóstolo dos gentios em Jesus, mas supõe também a fiabilidade de Jesus, que se funda, sem dúvida, no seu amor até à morte, mas também no facto de Ele ser Filho de Deus. Precisamente porque é o Filho, porque está radicado de modo absoluto no Pai, Jesus pôde vencer a morte e fazer resplandecer em plenitude a vida. A nossa cultura perdeu a noção desta presença concreta de Deus, da sua acção no mundo; pensamos que Deus Se encontra só no além, noutro nível de realidade, separado das nossas relações concretas. Mas, se fosse assim, isto é, se Deus fosse incapaz de agir no mundo, o seu amor não seria verdadeiramente poderoso, verdadeiramente real e, por conseguinte, não seria sequer verdadeiro amor, capaz de cumprir a felicidade que promete. E, então, seria completamente indiferente crer ou não crer n’Ele. Ao contrário, os cristãos confessam o amor concreto e poderoso de Deus, que actua verdadeiramente na história e determina o seu destino final; um amor que se fez passível de encontro, que se revelou em plenitude na paixão, morte e ressurreição de Cristo.
18. A plenitude a que Jesus leva a fé possui outro aspecto decisivo: na fé, Cristo não é apenas Aquele em quem acreditamos, a maior manifestação do amor de Deus, mas é também Aquele a quem nos unimos para poder acreditar. A fé não só olha para Jesus, mas olha também a partir da perspectiva de Jesus e com os seus olhos: é uma participação no seu modo de ver. Em muitos âmbitos da vida, fiamo-nos de outras pessoas que conhecem as coisas melhor do que nós: temos confiança no arquitecto que constrói a nossa casa, no farmacêutico que nos fornece o remédio para a cura, no advogado que nos defende no tribunal. Precisamos também de alguém que seja fiável e perito nas coisas de Deus: Jesus, seu Filho, apresenta-Se como Aquele que nos explica Deus (cf. Jo 1, 18). A vida de Cristo, a sua maneira de conhecer o Pai, de viver totalmente em relação com Ele abre um espaço novo à experiência humana, e nós podemos entrar nele. São João exprimiu a importância que a relação pessoal com Jesus tem para a nossa fé, através de vários usos do verbo crer. Juntamente com o « crer que » é verdade o que Jesus nos diz (cf.Jo 14, 10; 20, 31), João usa mais duas expressões: « crer a (sinónimo de dar crédito a) » Jesus e « crer em » Jesus. « Cremos a » Jesus, quando aceitamos a sua palavra, o seu testemunho, porque Ele é verdadeiro (cf. Jo 6, 30). « Cremos em » Jesus, quando O acolhemos pessoalmente na nossa vida e nos confiamos a Ele, aderindo a Ele no amor e seguindo-O ao longo do caminho (cf. Jo 2, 11; 6, 47; 12, 44).
Para nos permitir conhecê-Lo, acolhê-Lo e segui-Lo, o Filho de Deus assumiu a nossa carne; e, assim, a sua visão do Pai deu-se também de forma humana, através de um caminho e um percurso no tempo. A fé cristã é fé na encarnação do Verbo e na sua ressurreição na carne; é fé num Deus que Se fez tão próximo que entrou na nossa história. A fé no Filho de Deus feito homem em Jesus de Nazaré não nos separa da realidade; antes permite-nos individuar o seu significado mais profundo, descobrir quanto Deus ama este mundo e o orienta sem cessar para Si; e isto leva o cristão a comprometer-se, a viver de modo ainda mais intenso o seu caminho sobre a terra.
A salvação pela fé
19. A partir desta participação no modo de ver de Jesus, o apóstolo Paulo deixou-nos, nos seus escritos, uma descrição da existência crente. Aquele que acredita, ao aceitar o dom da fé, é transformado numa nova criatura, recebe um novo ser, um ser filial, torna-se filho no Filho: « Abbá, Pai » é a palavra mais característica da experiência de Jesus, que se torna centro da experiência cristã (cf. Rm 8, 15). A vida na fé, enquanto existência filial, é reconhecer o dom originário e radical que está na base da existência do homem, podendo resumir-se nesta frase de São Paulo aos Coríntios: « Que tens tu que não tenhas recebido? » (1 Cor 4, 7). É precisamente aqui que se situa o cerne da polémica do Apóstolo com os fariseus: a discussão sobre a salvação pela fé ou pelas obras da lei. Aquilo que São Paulo rejeita é a atitude de quem se quer justificar a si mesmo diante de Deus através das próprias obras; esta pessoa, mesmo quando obedece aos mandamentos, mesmo quando realiza obras boas, coloca-se a si própria no centro e não reconhece que a origem do bem é Deus. Quem actua assim, quem quer ser fonte da sua própria justiça, depressa a vê exaurir-se e descobre que não pode sequer aguentar-se na fidelidade à lei; fecha-se, isolando-se do Senhor e dos outros, e, por isso, a sua vida torna-se vã, as suas obras estéreis, como árvore longe da água. Assim se exprime Santo Agostinho com a sua linguagem concisa e eficaz: « Não te afastes d’Aquele que te fez, nem mesmo para te encontrares a ti ».[15] Quando o homem pensa que, afastando-se de Deus, encontrar-se-á a si mesmo, a sua existência fracassa (cf. Lc 15, 11-24). O início da salvação é a abertura a algo que nos antecede, a um dom originário que sustenta a vida e a guarda na existência. Só abrindo-nos a esta origem e reconhecendo-a é que podemos ser transformados, deixando que a salvação actue em nós e torne a vida fecunda, cheia de frutos bons. A salvação pela fé consiste em reconhecer o primado do dom de Deus, como resume São Paulo: « Porque é pela graça que estais salvos, por meio da fé. E isto não vem de vós, é dom de Deus » (Ef 2, 8).
20. A nova lógica da fé centra-se em Cristo. A fé em Cristo salva-nos, porque é n’Ele que a vida se abre radicalmente a um Amor que nos precede e transforma a partir de dentro, que age em nós e connosco. Vê-se isto claramente na exegese que o Apóstolo dos gentios faz de um texto do Deuteronómio; uma exegese que se insere na dinâmica mais profunda do Antigo Testamento. Moisés diz ao povo que o mandamento de Deus não está demasiado alto nem demasiado longe do homem; não se deve dizer: « Quem subirá por nós até ao céu e no-la irá buscar? » ou « Quem atravessará o mar e no-la irá buscar? » (cf. Dt 30, 11-14). Esta proximidade da palavra de Deus é concretizada por São Paulo na presença de Jesus no cristão. « Não digas no teu coração: Quem subirá ao céu? Seria para fazer com que Cristo descesse. Nem digas: Quem descerá ao abismo? Seria para fazer com que Cristo subisse de entre os mortos » (Rm 10, 6-7). Cristo desceu à terra e ressuscitou dos mortos: com a sua encarnação e ressurreição, o Filho de Deus abraçou o percurso inteiro do homem e habita nos nossos corações por meio do Espírito Santo. A fé sabe que Deus Se tornou muito próximo de nós, que Cristo nos foi oferecido como grande dom que nos transforma interiormente, que habita em nós, e assim nos dá a luz que ilumina a origem e o fim da vida, o arco inteiro do percurso humano.
21. Podemos assim compreender a novidade, a que a fé nos conduz. O crente é transformado pelo Amor, ao qual se abriu na fé; e, na sua abertura a este Amor que lhe é oferecido, a sua existência dilata-se para além dele próprio. São Paulo pode afirmar: « Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim » (Gl 2, 20), e exortar: « Que Cristo, pela fé, habite nos vossos corações » (Ef 3, 17). Na fé, o « eu » do crente dilata-se para ser habitado por um Outro, para viver num Outro, e assim a sua vida amplia-se no Amor. É aqui que se situa a acção própria do Espírito Santo: o cristão pode ter os olhos de Jesus, os seus sentimentos, a sua predisposição filial, porque é feito participante do seu Amor, que é o Espírito; é neste Amor que se recebe, de algum modo, a visão própria de Jesus. Fora desta conformação no Amor, fora da presença do Espírito que o infunde nos nossos corações (cf. Rm 5, 5), é impossível confessar Jesus como Senhor (cf. 1 Cor 12, 3).
A forma eclesial da fé
22. Deste modo, a vida do fiel torna-se existência eclesial. Quando São Paulo fala aos cristãos de Roma do único corpo que todos os crentes formam em Cristo, exorta-os a não se vangloriarem, mas a avaliarem-se « de acordo com a medida de fé que Deus distribuiu a cada um » (Rm 12, 3). O crente aprende a ver-se a si mesmo a partir da fé que professa. A figura de Cristo é o espelho em que descobre realizada a sua própria imagem. E dado que Cristo abraça em Si mesmo todos os crentes que formam o seu corpo, o cristão compreende-se a si mesmo neste corpo, em relação primordial com Cristo e os irmãos na fé. A imagem do corpo não pretende reduzir o crente a simples parte de um todo anónimo, a mero elemento de uma grande engrenagem; antes, sublinha a união vital de Cristo com os crentes e de todos os crentes entre si (cf. Rm 12, 4-5). Os cristãos sejam « todos um só » (cf. Gl 3, 28), sem perder a sua individualidade, e, no serviço aos outros, cada um ganha profundamente o próprio ser. Compreende-se assim por que motivo, fora deste corpo, desta unidade da Igreja em Cristo — desta Igreja que, segundo as palavras de Romano Guardini, « é a portadora histórica do olhar global de Cristo sobre o mundo »,[16] —, a fé perca a sua « medida », já não encontre o seu equilíbrio, nem o espaço necessário para se manter de pé. A fé tem uma forma necessariamente eclesial, é professada partindo do corpo de Cristo, como comunhão concreta dos crentes. A partir deste lugar eclesial, ela abre o indivíduo cristão a todos os homens. Uma vez escutada, a palavra de Cristo, pelo seu próprio dinamismo, transforma-se em resposta no cristão, tornando-se ela mesma palavra pronunciada, confissão de fé. São Paulo afirma: « Realmente com o coração se crê (…) e com a boca se faz a profissão de fé » (Rm 10, 10). A fé não é um facto privado, uma concepção individualista, uma opinião subjectiva, mas nasce de uma escuta e destina-se a ser pronunciada e a tornar-se anúncio. Com efeito, « como hão-de acreditar n’Aquele de quem não ouviram falar? E como hão-de ouvir falar, sem alguém que O anuncie? (Rm 10, 14). Concluindo, a fé torna-se operativa no cristão a partir do dom recebido, a partir do Amor que o atrai para Cristo (cf. Gl 5, 6) e torna participante do caminho da Igreja, peregrina na história rumo à perfeição. Para quem foi assim transformado, abre-se um novo modo de ver, a fé torna-se luz para os seus olhos.

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CARTA ENCÍCLICA LUMEN FIDEI DO SUMO PONTÍFICE FRANCISCO

CARTA ENCÍCLICA
LUMEN FIDEI
DO SUMO PONTÍFICE
FRANCISCOAOS BISPOS
AOS PRESBÍTEROS E AOS DIÁCONOS
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E A TODOS OS FIÉIS LEIGOS
SOBRE A FÉ



1. A luz da fé é a expressão com que a tradição da Igreja designou o grande dom trazido por Jesus. Eis como Ele Se nos apresenta, no Evangelho de João: « Eu vim ao mundo como luz, para que todo o que crê em Mim não fique nas trevas » (Jo 12, 46). E São Paulo exprime-se nestes termos: « Porque o Deus que disse: "das trevas brilhe a luz", foi quem brilhou nos nossos corações » (2 Cor 4, 6). No mundo pagão, com fome de luz, tinha-se desenvolvido o culto do deus Sol, Sol invictus, invocado na sua aurora. Embora o sol renascesse cada dia, facilmente se percebia que era incapaz de irradiar a sua luz sobre toda a existência do homem. De facto, o sol não ilumina toda a realidade, sendo os seus raios incapazes de chegar até às sombras da morte, onde a vista humana se fecha para a sua luz. Aliás « nunca se viu ninguém — afirma o mártir São Justino — pronto a morrer pela sua fé no sol ».[1] Conscientes do amplo horizonte que a fé lhes abria, os cristãos chamaram a Cristo o verdadeiro Sol, « cujos raios dão a vida ».[2] A Marta, em lágrimas pela morte do irmão Lázaro, Jesus diz-lhe: « Eu não te disse que, se acreditares, verás a glória de Deus? » (Jo 11, 40). Quem acredita, vê; vê com uma luz que ilumina todo o percurso da estrada, porque nos vem de Cristo ressuscitado, estrela da manhã que não tem ocaso.
Uma luz ilusória?
2. E contudo podemos ouvir a objecção que se levanta de muitos dos nossos contemporâneos, quando se lhes fala desta luz da fé. Nos tempos modernos, pensou-se que tal luz poderia ter sido suficiente para as sociedades antigas, mas não servia para os novos tempos, para o homem tornado adulto, orgulhoso da sua razão, desejoso de explorar de forma nova o futuro. Nesta perspectiva, a fé aparecia como uma luz ilusória, que impedia o homem de cultivar a ousadia do saber. O jovem Nietzsche convidava a irmã Elisabeth a arriscar, percorrendo vias novas (…), na incerteza de proceder de forma autónoma ». E acrescentava: « Neste ponto, separam-se os caminhos da humanidade: se queres alcançar a paz da alma e a felicidade, contenta-te com a fé; mas, se queres ser uma discípula da verdade, então investiga ».[3] O crer opor-se-ia ao indagar. Partindo daqui, Nietzsche desenvolverá a sua crítica ao cristianismo por ter diminuído o alcance da existência humana, espoliando a vida de novidade e aventura. Neste caso, a fé seria uma espécie de ilusão de luz, que impede o nosso caminho de homens livres rumo ao amanhã.
3. Por este caminho, a fé acabou por ser associada com a escuridão. E, a fim de conviver com a luz da razão, pensou-se na possibilidade de a conservar, de lhe encontrar um espaço: o espaço para a fé abria-se onde a razão não podia iluminar, onde o homem já não podia ter certezas. Deste modo, a fé foi entendida como um salto no vazio, que fazemos por falta de luz e impelidos por um sentimento cego, ou como uma luz subjectiva, talvez capaz de aquecer o coração e consolar pessoalmente, mas impossível de ser proposta aos outros como luz objectiva e comum para iluminar o caminho. Entretanto, pouco a pouco, foi-se vendo que a luz da razão autónoma não consegue iluminar suficientemente o futuro; este, no fim de contas, permanece na sua obscuridade e deixa o homem no temor do desconhecido. E, assim, o homem renunciou à busca de uma luz grande, de uma verdade grande, para se contentar com pequenas luzes que iluminam por breves instantes, mas são incapazes de desvendar a estrada. Quando falta a luz, tudo se torna confuso: é impossível distinguir o bem do mal, diferenciar a estrada que conduz à meta daquela que nos faz girar repetidamente em círculo, sem direcção.
Uma luz a redescobrir
4. Por isso, urge recuperar o carácter de luz que é próprio da fé, pois, quando a sua chama se apaga, todas as outras luzes acabam também por perder o seu vigor. De facto, a luz da fé possui um carácter singular, sendo capaz de iluminar toda a existência do homem. Ora, para que uma luz seja tão poderosa, não pode dimanar de nós mesmos; tem de vir de uma fonte mais originária, deve porvir em última análise de Deus. A fé nasce no encontro com o Deus vivo, que nos chama e revela o seu amor: um amor que nos precede e sobre o qual podemos apoiar-nos para construir solidamente a vida. Transformados por este amor, recebemos olhos novos e experimentamos que há nele uma grande promessa de plenitude e se nos abre a visão do futuro. A fé, que recebemos de Deus como dom sobrenatural, aparece-nos como luz para a estrada orientando os nossos passos no tempo. Por um lado, provém do passado: é a luz duma memória basilar — a da vida de Jesus –, onde o seu amor se manifestou plenamente fiável, capaz de vencer a morte. Mas, por outro lado e ao mesmo tempo, dado que Cristo ressuscitou e nos atrai de além da morte, a fé é luz que vem do futuro, que descerra diante de nós horizontes grandes e nos leva a ultrapassar o nosso « eu » isolado abrindo-o à amplitude da comunhão. Deste modo, compreendemos que a fé não mora na escuridão, mas é uma luz para as nossas trevas. Dante, na Divina Comédia, depois de ter confessado diante de São Pedro a sua fé, descreve-a como uma « centelha / que se expande depois em viva chama / e, como estrela no céu, em mim cintila ». [4] É precisamente desta luz da fé que quero falar, desejando que cresça a fim de iluminar o presente até se tornar estrela que mostra os horizontes do nosso caminho, num tempo em que o homem vive particularmente carecido de luz.
5. Antes da sua paixão, o Senhor assegurava a Pedro: « Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça » (Lc 22, 32). Depois pediu-lhe para « confirmar os irmãos » na mesma fé. Consciente da tarefa confiada ao Sucessor de Pedro, Bento XVI quis proclamar este Ano da Fé, um tempo de graça que nos tem ajudado a sentir a grande alegria de crer, a reavivar a percepção da amplitude de horizontes que a fé descerra, para a confessar na sua unidade e integridade, fiéis à memória do Senhor, sustentados pela sua presença e pela acção do Espírito Santo. A convicção duma fé que faz grande e plena a vida, centrada em Cristo e na força da sua graça, animava a missão dos primeiros cristãos. Nas Actas dos Mártires, lemos este diálogo entre o prefeito romano Rústico e o cristão Hierax: « Onde estão os teus pais? » — perguntava o juiz ao mártir; este respondeu: « O nosso verdadeiro pai é Cristo, e nossa mãe a fé n’Ele ».[5] Para aqueles cristãos, a fé, enquanto encontro com o Deus vivo que Se manifestou em Cristo, era uma « mãe », porque os fazia vir à luz, gerava neles a vida divina, uma nova experiência, uma visão luminosa da existência, pela qual estavam prontos a dar testemunho público até ao fim.
6. O Ano da Fé teve início no cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II. Esta coincidência permite-nos ver que o mesmo foi um Concílio sobre a fé,[6] por nos ter convidado a repor, no centro da nossa vida eclesial e pessoal, o primado de Deus em Cristo. Na verdade, a Igreja nunca dá por descontada a fé, pois sabe que este dom de Deus deve ser nutrido e revigorado sem cessar para continuar a orientar o caminho dela. O Concílio Vaticano II fez brilhar a fé no âmbito da experiência humana, percorrendo assim os caminhos do homem contemporâneo. Desta forma, se viu como a fé enriquece a existência humana em todas as suas dimensões.
7. Estas considerações sobre a fé — em continuidade com tudo o que o magistério da Igreja pronunciou acerca desta virtude teologal [7] — pretendem juntar-se a tudo aquilo que Bento XVI escreveu nas cartas encíclicas sobre acaridade e a esperança. Ele já tinha quase concluído um primeiro esboço desta carta encíclica sobre a fé. Estou-lhe profundamente agradecido e, na fraternidade de Cristo, assumo o seu precioso trabalho, limitando-me a acrescentar ao texto qualquer nova contribuição. De facto, o Sucessor de Pedro, ontem, hoje e amanhã, sempre está chamado a « confirmar os irmãos » no tesouro incomensurável da fé que Deus dá a cada homem como luz para o seu caminho.
Na fé, dom de Deus e virtude sobrenatural por Ele infundida, reconhecemos que um grande Amor nos foi oferecido, que uma Palavra estupenda nos foi dirigida: acolhendo esta Palavra que é Jesus Cristo — Palavra encarnada –, o Espírito Santo transforma-nos, ilumina o caminho do futuro e faz crescer em nós as asas da esperança para o percorrermos com alegria. Fé, esperança e caridade constituem, numa interligação admirável, o dinamismo da vida cristã rumo à plena comunhão com Deus. Mas, como é este caminho que a fé desvenda diante de nós? Donde provém a sua luz, tão poderosa que permite iluminar o caminho duma vida bem sucedida e fecunda, cheia de fruto?
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Angelus

PAPA FRANCISCO
ANGELUS 
Praça de São Pedro
Domingo, 3 de Novembro de 2013


Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
A página do Evangelho de Lucas deste domingo mostra-nos Jesus que, no seu caminho rumo a Jerusalém, entra na cidade de Jericó. Esta é a última etapa de uma viagem que resume em si o sentido de toda a vida de Jesus, dedicada à procura e à salvação das ovelhas perdidas da casa de Israel. Mas quanto mais o caminho se aproxima da meta, tanto mais se vai estreitando ao redor de Jesus um círculo de hostilidades.
E no entanto, em Jericó tem lugar um dos acontecimentos mais jubilosos narrados por são Lucas: a conversão de Zaqueu. Esse homem é uma ovelha perdida, é desprezado, é um «excomungado» porque é um publicano; aliás, é o chefe dos publicanos da cidade, amigo dos odiados ocupantes romanos, é um ladrão e um explorador.
Impedido de se aproximar de Jesus, provavelmente por causa da sua má fama, e dado que era pequeno de estatura, Zaqueu sobe a uma árvore para poder ver o Mestre que passa. Este gesto exterior, um pouco ridículo, exprime contudo a atitude interior do homem que procura elevar-se acima da multidão para entrar em contacto com Jesus. O próprio Zaqueu não conhece o sentido profundo deste seu gesto, não sabe por que o faz, mas fá-lo; nem sequer ousa esperar que possa ser superada a distância que o separa do Senhor; resigna-se a vê-lo só de passagem. Mas quando chega perto daquela árvore, Jesus chama-o pelo nome: «Zaqueu, desce depressa, porque hoje tenho que ficar em tua casa» (Lc 19, 5). Aquele homem pequeno de estatura, rejeitado por todos e distante de Jesus, vive como que perdido no anonimato; mas Jesus chama-o, e aquele nome, «Zaqueu», na língua daquela época tem um significado bonito, cheio de alusões: com efeito, «Zaqueu» quer dizer «Deus recorda».
E Jesus vai à casa de Zaqueu, suscitando as críticas de todos os habitantes de Jericó (porque também naquele tempo as pessoas bisbilhotavam muito!), que diziam: — Mas como? Com todas as pessoas boas que vivem na cidade, Ele vai ter precisamente com aquele publicano? Sim, porque ele estava perdido; e Jesus diz: «Hoje entrou a salvação nesta casa, porquanto também este é filho de Abraão» (Lc 19, 9). A partir daquele dia, na casa de Zaqueu entrou a alegria, entrou a paz, entrou a salvação, entrou Jesus.
Não há profissão nem condição social, não existe pecado nem crime de qualquer tipo que possa eliminar da memória e do coração de Deus um só dos seus filhos. «Deus recorda» sempre, não se esquece de nenhum daqueles que Ele criou; Ele é Pai, sempre à espera vigilante e amorosa de ver renascer no coração do filho o desejo de voltar para casa. E quando reconhece aquele desejo, embora simplesmente mencionado, e muitas vezes quase inconsciente, põe-se imediatamente ao seu lado e, com o seu perdão, faz com que o seu caminho de conversão e de volta seja mais suave. Olhemos para Zaqueu hoje, na árvore: o seu gesto é ridículo, mas é uma atitude de salvação. E eu digo-te: se tiveres um peso na consciência, se sentires vergonha de tantas coisas que cometeste, pára um pouco, não te assustes. Pensa que alguém te espera, porque nunca deixou de se recordar de ti; e este alguém é o teu Pai, é Deus que te espera! A exemplo de Zaqueu, também tu sobe na árvore do desejo de ser perdoado; garanto-te que não ficarás decepcionado. Jesus é misericordioso e nunca se cansa de perdoar! Recordai-vos bem disto, Jesus é assim.
Irmãos e irmãs, deixemos também nós que Jesus nos chame pelo nome! No fundo do nosso coração, ouçamos a sua voz que nos diz: «Hoje tenho que ficar em tua casa», ou seja, no teu coração, na tua vida. E acolhamo-lo com alegria: Ele pode mudar-nos, pode transformar o nosso coração de pedra em coração de carne, pode libertar-nos do egoísmo e fazer da nossa vida uma dádiva de amor. Jesus pode fazê-lo; deixa-te olhar por Jesus!



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sábado, 9 de novembro de 2013

AUDIÊNCIA GERAL

PAPA FRANCISCO
AUDIÊNCIA GERAL
Praça de São Pedro
Quarta-feira, 6 de Novembro de 2013


Prezados irmãos e irmãs, bom dia!
Na quarta-feira passada falei sobre a comunhão dos santos, entendida como comunhão entre as pessoas santas, ou seja entre nós, crentes. Hoje gostaria de aprofundar o outro aspecto desta realidade. Como recordais, havia dois aspectos: o primeiro, a comunhão, a unidade entre nós; e o outro aspecto, a comunhão nas coisas sagradas, nos bens espirituais. Estes dois aspectos estão intimamente ligados entre si; com efeito, a comunhão entre os cristãos aumenta mediante a participação nos bens espirituais. De modo particular, consideremos: os Sacramentos, os carismas e a caridade (cf. Catecismo da Igreja Católicann. 949-953). Nós crescemos em unidade, em comunhão, mediante os Sacramentos, os carismas que cada um recebe do Espírito santo, e a caridade.
Antes de tudo, a comunhão nos Sacramentos. Os Sacramentos expressam e realizam uma comunhão concreta e profunda entre nós, porque neles nós encontramos Cristo Salvador e, através dele, os nossos irmãos na fé. Os Sacramentos não são aparências, não são ritos, mas constituem a força de Cristo; Jesus Cristo está presente nos Sacramentos. Quando celebramos a Eucaristia, é Jesus vivo que nos congrega, que faz de nós uma comunidade, que nos leva a adorar o Pai. Com efeito, cada um de nós, mediante o Baptismo, a Confirmação e a Eucaristia, é incorporado em Cristo e unido a toda a comunidade dos fiéis. Por conseguinte, se por um lado é a Igreja que «faz» os Sacramentos, por outro são os Sacramentos que «fazem» a Igreja, que a edificam, gerando novos filhos, agregando-os ao povo santo de Deus e consolidando a sua pertença.
Cada encontro com Cristo, que nos Sacramentos nos concede a salvação, convida-nos a «ir» e comunicar aos outros uma salvação que pudemos ver, tocar, encontrar e receber, e que é verdadeiramente credível porque é amor. Deste modo, os Sacramentos impelem-nos a ser missionários, e o compromisso apostólico de levar o Evangelho a todos os ambientes, até àqueles mais hostis, constitui o fruto mais autêntico de uma vida sacramental assídua, enquanto significa participação na iniciativa salvífica de Deus, que quer oferecer a salvação a todos. A graça dos Sacramentos alimenta em nós uma fé forte e jubilosa, uma fé que sabe admirar-se diante das «maravilhas» de Deus e sabe resistir aos ídolos do mundo. Por isso, é relevante fazer Comunhão, é importante que as crianças sejam baptizadas cedo, que sejam crismadas, porque os Sacramentos constituem a presença de Jesus Cristo em nós, uma presença que nos ajuda. Quando nos sentimos pecadores, é importante que nos aproximemos do sacramento da Reconciliação. Alguém poderá dizer: «Mas tenho medo, porque o sacerdote repreender-me-á». Não, o presbítero não te censurará; sabes quem encontrarás no sacramento da Reconciliação? Encontrarás Jesus que te perdoa! É Jesus que te espera ali; trata-se de um Sacramento que faz crescer a Igreja inteira.
Um segundo aspecto da comunhão nas coisas sagradas é o da comunhão dos carismas. O Espírito Santo dispensa aos fiéis uma miríade de dons e de graças espirituais; esta riqueza, digamos «fantasiosa» dos dons do Espírito Santo, tem como finalidade a edificação da Igreja. Os carismas — palavra um pouco difícil — são as dádivas que o Espírito Santo nos concede, habilidades, possibilidades... Dons oferecidos não para permanecer escondidos, mas para serem comunicados aos outros. Eles não são concedidos em benefício de quantos os recebem, mas para a utilidade do povo de Deus. Ao contrário, se um carisma, um destes dons, servir para nos afirmarmos a nós mesmos, há que duvidar que se trate de um carisma autêntico, ou que seja vivido fielmente. Os carismas são graças especiais, concedidas a algumas pessoas para fazer o bem a muitas outras. Trata-se de atitudes, de inspirações e de ímpetos interiores, que nascem na consciência e na experiência de determinadas pessoas, que são chamadas a colocá-los ao serviço da comunidade. De modo particular, estes dons espirituais beneficiam a santidade da Igreja e da sua missão. Todos somos chamados a respeitá-los em nós mesmos e nos outros, a recebê-los como estímulos úteis para uma presença e uma obra fecunda da Igreja. São Paulo admoestava: «Não extingais o Espírito» (1 Ts 5, 19). Não extingamos o Espírito que nos oferece estas dádivas, estas capacidades e estas virtudes tão boas, que fazem crescer a Igreja.
Qual é a nossa atitude perante estes dons do Espírito Santo? Estamos conscientes de que o Espírito de Deus é livre de os conceder a quem quiser? Consideramo-los como um auxílio espiritual, através do qual o Senhor sustém a nossa fé e fortalece a nossa missão no mundo?
Vejamos agora o terceiro aspecto da comunhão nas coisas sagradas, ou seja a comunhão da caridade, a unidade entre nós que faz a caridade, o amor. Os pagãos, observando os primeiros cristãos, diziam: mas como se amam, como se estimam mutuamente! Não se odeiam, não falam mal uns dos outros. Esta é a caridade, o amor de Deus que o Espírito Santo insere no nosso coração. Os carismas são importantes na vida da comunidade cristã, mas são sempre meios para crescer na caridade, no amor, que são Paulo coloca acima dos carismas (cf. 1 Cor 13, 1-13). Com efeito, sem amor até os dons mais extraordinários são vãos; este homem cura as pessoas, tem esta qualidade, esta virtude... mas tem amor e caridade no seu coração? Se os tiver é um bem, mas se não os tem, não é útil para a Igreja. Sem o amor, todas estas dádivas e carismas não servem para a Igreja, pois onde não há amor, cria-se um vazio que é preenchido pelo egoísmo. E pergunto-me: se todos nós somos egoístas, podemos viver em comunhão e em paz? Não se pode, e por isso é necessário o amor que nos une. O mais pequenino dos nossos gestos de amor tem efeitos positivos para todos! Portanto, viver a unidade na Igreja e a comunhão da caridade significa não procurar o próprio interesse, mas participar nos sofrimentos e nas alegrias dos irmãos (cf. 1 Cor 12, 26), prontos para carregar os fardos dos mais frágeis e pobres. Esta solidariedade fraterna não é uma figura retórica, um modo de dizer, mas faz parte integrante da comunhão entre os cristãos. Se a vivermos, seremos no mundo sinal, «sacramento» do amor de Deus. Sê-lo-emos uns para os outros e para todos! Não se trata apenas daquela caridade superficial que podemos oferecer-nos uns aos outros, mas trata-se de algo mais profundo: é uma comunhão que nos torna capazes de entrar na alegria e no sofrimento do próximo para os tornar sinceramente nossos.
E com frequências somos demasiado áridos, indiferentes e desinteressados, e em vez de transmitir fraternidade, transmitimos mau humor, insensibilidade e egoísmo. E com mau humor, insensibilidade e egoísmo não se pode fazer crescer a Igreja; a Igreja cresce unicamente com o amor que deriva do Espírito Santo. O Senhor convida-nos a abrir-nos à comunhão com Ele nos Sacramentos, nos carismas e na caridade, para vivermos de maneira digna da nossa vocação cristã!
E agora permito-me pedir-vos um gesto de caridade: estai tranquilos, não se trata da colecta! Antes de vir à praça, fui visitar uma criança de um ano e meio, com uma doença extremamente grave. O seu pai e a sua mãe rezam e pedem ao Senhor a saúde para esta bonita menina. Ela chama-se Noemi. Sorria, pobrezinha! Façamos um gesto de amor. Nós não a conhecemos, mas é uma criança baptizada, é uma de nós, é uma cristã. Façamos um gesto de amor por ela e, em silêncio, peçamos ao Senhor que a ajude neste momento e que lhe conceda a saúde. Em silêncio, por um instante, e depois recitaremos a Ave-Maria. E agora todos juntos, roguemos a Nossa Senhora pela saúde de Noemi. Ave Maria... Obrigado por este gesto de caridade!

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O convite para a festa não tem preço

PAPA FRANCISCO
MEDITAÇÕES MATUTINAS NA SANTA MISSA CELEBRADA
NA CAPELA DA DOMUS SANCTAE MARTHAE
O convite para a festa não tem preço

Publicado no L'Osservatore Romano, ed. em português, n. 45 de 7 de Novembro de 2013
 
«A existência cristã é um convite» gratuito para a festa; um convite que não se pode comprar, porque vem de Deus, e ao qual é preciso responder com a participação e a partilha. Foi a reflexão sugerida pelo Papa Francisco na missa celebrada na manhã de terça-feira, 5 de Novembro, em Santa Marta, inspirada nas leituras litúrgicas (Rm 12, 5-16a;Lc 14, 15-24). Leituras — explicou — que «nos mostram como é o bilhete de identidade do cristão; como é o cristão». E das quais se compreende «antes de tudo» que «a existência cristã é um convite: só nos tornamos cristãos se formos convidados».
O Papa Francisco esclareceu o que significa concretamente o convite do Senhor para cada cristão: não é um convite «para dar um passeio» mas «para uma festa; para a alegria: a alegria de ser salvo, a alegria de ser redimido», a alegria de partilhar a vida com Jesus. E sugeriu também o que devemos entender com o termo «festa»: «uma reunião de pessoas que falam, riem, festejam, são felizes», disse. Mas o elemento principal é exactamente a «reunião» de muitos indivíduos. «Entre as pessoas mentalmente normais nunca vi alguém que festeja sozinho: seria um pouco tedioso!», explicou, evocando a triste imagem de quem «abre uma garrafa de vinho» para brindar em solidão. Portanto, a festa exige que se esteja em companhia, «com os outros, em família, com os amigos». Resumindo, a festa «partilha-se». Por isso, ser cristão implica «pertença. Pertencemos a este corpo», feito de «pessoas que foram convidadas para a festa»; uma festa que «nos une a todos», uma «festa de unidade». Portanto a festa exige um estar em companhia, «com os outros, em família, com os amigos». Em síntese, a festa «partilha-se». Por isso ser cristão exige a «pertença. Pertence-se a este corpo», feito de «gente que foi convidada para a festa»; uma festa que «nos une todos», uma festa de unidade».
Um ulterior aspecto analisado pelo Pontífice refere-se à misericórdia de Deus, que alcança até quantos declinam o convite ou fingem que o aceitam mas não participam plenamente na festa. O trecho de Lucas enumera as desculpas dadas por alguns convidados muito ocupados, os quais «participam na festa só de nome: não aceitam o convite, dizem sim» mas na verdade é um não. Para o Papa Francisco são os precursores daqueles «cristãos que se limitam a estar na lista dos convidados. Cristãos “na lista”». Contudo, infelizmente ser «classificado como cristão» não «é suficiente. Se não entrarmos na festa, não somos cristãos; estamos na lista mas isto não serve para a nossa salvação», advertiu o Papa.
Resumindo a sua reflexão, o Pontífice citou cinco significados ligados à imagem do «entrar na igreja» e, consequentemente, do «entrar na Igreja». Antes de mais, trata-se de «uma graça, um convite; não se pode comprar este direito». Em segundo lugar, inclui o «criar comunidade, partilhar tudo o que temos — as virtudes, as qualidades que o Senhor nos doou — no serviço de uns aos outros». Além disso, requer que «estejamos disponíveis para o que o Senhor nos pede». E quer dizer também «não pedir estradas ou portas especiais». E por último, significa «entrar no povo de Deus que caminha rumo à eternidade» e no qual «ninguém é protagonista», porque «temos Alguém que fez tudo» e só ele pode ser “o protagonista”». Eis a exortação do Papa Francisco para nos colocarmos «todos atrás dele; e quem não está atrás dele, é alguém que inventa desculpas». Como aquele que, parafraseando o Evangelho, diz: «Comprei o campo, casei, comprei o gado, mas não posso ir atrás dele».
Certamente, advertiu o Santo Padre, «o Senhor é muito generoso» e «abre todas as portas». Ele «compreende também quem diz: não, Senhor, não quero vir contigo. Compreende e espera, porque é misericordioso». Mas não aceita mentiras: «O Senhor — frisou — não aprecia o homem que promete e não cumpre. Quem finge que agradece por muitas coisas boas mas na realidade continua pela sua estrada; quem tem boas maneiras, mas só faz a própria vontade, não a do Senhor».
Eis então o convite conclusivo do Papa, que exortou a pedir a Deus a graça de compreender «como é bom ser convidado para a festa, partilhar com todos as próprias qualidades, estar com Ele»; e, ao contrário, como é «triste brincar com o sim e o não; dizer sim mas satisfazer-se só com “estar” na lista dos cristãos».



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Dois ícones e uma pergunta

PAPA FRANCISCO
MISSA DO PONTÍFICE DIANTE DO TÚMULO DE JOÃO PAULO II
 NA BASÍLICA DE SÃO PEDRO
Dois ícones e uma pergunta
Quinta-feira, 31 de Outubro de 2013

Publicado no L'Osservatore Romano, ed. em português, n. 44 de 7 de Novembro de 2013
Com o Santo Padre concelebraram mais de cento e vinte sacerdotes, sobretudo polacos, entre os quais o esmoler pontifício, D. Konrad Krajewski. Comentando as leituras do dia (Rm 8, 31-39) e do Evangelho (Lc 13, 31-35), o Papa pronunciou esta homilia.
Nestas leituras surpreendem duas coisas. Primeiro, a segurança de Paulo: «Ninguém pode afastar-me de Cristo». Mas ele amava de tal modo o Senhor — depois de o ter visto e encontrado, Ele mudou a sua vida — que chegava a dizer que nada o podia afastar d’Ele. Precisamente este amor do Senhor estava no centro da vida de Paulo, nas perseguições, doenças e traições, mas nada daquilo que ele vivera, do que lhe tinha acontecido, podia afastá-lo do amor de Cristo. E sem o amor de Cristo, sem viver deste amor, sem o reconhecer, sem se alimentar deste amor não se pode ser cristão: o cristão, quem se sente observado pelo Senhor com aquele olhar tão bondoso, amado pelo Senhor, e até ao fim, sente... O cristão sente que a sua vida foi salva pelo sangue de Cristo. É isto que faz o amor: eis no que consiste a relação do amor.
Esta é a primeira coisa que me surpreende muito. A segunda é a tristeza de Jesus, ao contemplar Jerusalém: «Mas tu, Jerusalém, não entendeste o amor!». A cidade não entendeu a ternura de Deus, com aquela imagem tão bonita que Jesus lhe mostrou. Não compreendeu o amor de Deus, ao contrário de Paulo. Sim! Deus ama-me, ama-nos, mas é algo abstracto, algo que não toca o meu coração, e assim eu levo a vida como posso. Nisto não há fidelidade. E o pranto do Coração de Jesus, ao ver Jerusalém, é este. «Jerusalém, tu não não és fiel, não te deixaste amar, confiaste-te a muitos ídolos que tudo te permitiam, que te diziam que te deves entregar totalmente, e depois abandonaram-te!».
O Coração de Jesus, o sofrimento do amor de Jesus é um amor não aceite, não recebido. Eis os dois ícones de hoje: o de Paulo, que permanece fiel até ao fim ao amor de Jesus, e nisto encontra a força para ir em frente, para suportar tudo. Ele sente-se frágil, pecador, mas recebe a força daquele amor de Deus, naquele encontro que teve com Jesus Cristo. Por outro lado, há a cidade, o povo infiel que não aceita o amor de Jesus, ou pior ainda, que vive este amor parcialmente: um pouco sim, um pouco não, segundo as suas conveniências. Vejamos Paulo, com a sua coragem que vem deste amor, vejamos Jesus que chora sobre aquela cidade infiel. Consideremos a fidelidade de Paulo e a infidelidade de Jerusalém e, no centro, Jesus, o seu Coração que nos ama em grande medida! O que podemos fazer? Uma pergunta: pareço-me mais com Paulo, ou com Jerusalém? O meu amor a Deus é tão forte como o de Paulo, ou o meu coração é tíbio como o de Jerusalém? Por intercessão do Beato João Paulo II, que o Senhor nos ajude a responder a esta pergunta. Assim seja!


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A esperança, esta desconhecida

PAPA FRANCISCO
MEDITAÇÕES MATUTINAS NA SANTA MISSA CELEBRADA
NA CAPELA DA DOMUS SANCTAE MARTHAE

A esperança, esta desconhecida

Publicado no L'Osservatore Romano, ed. em português, n. 44 de 31 de Outubro de 2013

A esperança é a mais humilde das três virtudes teologais, porque se esconde na vida. Contudo, ela transforma-nos em profundidade, assim como «uma mulher grávida não deixa de ser mulher» mas é como se se transformasse porque se torna mãe. O Papa Francisco falou sobre a esperança na manhã de terça-feira, 29 de Outubro, durante a missa celebrada em Santa Marta, reflectindo sobre a atitude dos cristãos na expectativa da revelação do Filho de Deus.
A esta atitude está ligada a esperança, uma virtude, disse o Papa, que se revelou mais forte do que o sofrimento, assim como escreve são Paulo na carta aos romanos (8, 18-25). «Paulo — frisou o Pontífice — refere-se aos sofrimentos do tempo presente, mas diz que não são comparáveis com a glória futura que será revelada em nós». O apóstolo fala de «fervorosa expectativa», uma tensão rumo à revelação que se refere a toda a criação. «Esta tensão é a esperança — disse o Papa — e viver na esperança é viver nesta tensão», na expectativa da revelação do Filho de Deus, quando toda a criação, «e também cada um de nós», for libertado da escravidão «para entrar na glória dos filhos de Deus».
Dizem, prosseguiu, que é «a mais humilde das três virtudes, porque se esconde na vida. Vemos e sentimos a fé, sabemos o que é; praticamos a caridade, sabemos o que é. Mas o que é a esperança?». A resposta do Papa foi: «Para nos aproximarmos mais podemos dizer em primeiro lugar que é um risco. A esperança é uma virtude perigosa, uma virtude, como diz são Paulo, de uma expectativa fervorosa pela revelação do Filho de Deus. Não é uma ilusão. É aquela que os israelitas tinham», os quais, quando foram libertados da escravidão disseram: «parecia que sonhávamos. Então a nossa boca abriu-se num sorriso e a nossa língua encheu-se de alegria».
Paulo «mostra outro ícone da esperança — acrescentou o Papa — é o do parto. De facto, sabemos que toda a criação, e também nós com ela, «geme e sofre as dores de parto até hoje». Não só, mas também nós, que possuímos as primícias do espírito, gememos — pensai na mulher que dá à luz — gememos interiormente, esperando. Estamos na expectativa. Este é um parto». A esperança, acrescentou, põe-se nesta dinâmica do dar a vida. A esperança «é uma graça que deve ser pedida». O Papa frisou que «uma coisa é viver na esperança, porque na esperança somos salvos, e outra é viver como bons cristãos e nada mais, viver na expectativa da revelação, ou viver bem com os mandamentos»; estar ancorados nas margens do mundo futuro «ou estacionados na laguna artificial». Para explicar o conceito o Papa indicou como mudou a atitude de Maria, «uma jovem», quando soube que seria mãe: «Vai, ajuda e canta aquele cântico de louvor». Porque, explicou o Papa Francisco, «quando uma mulher está grávida, é mulher» mas é como se se transformasse profundamente porque agora «é mãe». E a esperança é algo semelhante: «muda a nossa atitude». Por isso, acrescentou, «peçamos a graça de sermos homens e mulheres de esperança».
Durante a missa celebrada na manhã de segunda-feira, 28 de Outubro, o Papa Francisco reflectiu sobre o valor da oração feita pelo nosso próximo que vive um momento de dificuldade. A reflexão do Pontífice iniciou com um comentário do trecho evangélico de Lucas (6, 12-19) no qual se narra a escolha dos doze apóstolos feita por Jesus. É um dia «um pouco especial — disse — devido à escolha dos apóstolos». Uma escolha, acrescentou, que só aconteceu depois que Jesus rezou «sozinho» ao Pai.
Para ajudar a compreender melhor o sentido da oração de Jesus, o bispo de Roma recordou «aquele bonito discurso depois da ceia de quinta-feira santa, quando reza ao Pai dizendo: eu rezo pelos meus discípulos; mas também rezo por todos, inclusive pelos que virão e que acreditarão». A oração «de Jesus é universal» e é também «uma oração pessoal». Mas, se é verdade que Jesus naquele tempo rezava, reza ainda hoje? «Sim, diz a Bíblia», respondeu. E explicou: «É o intercessor, aquele que reza», e reza ao Pai «connosco e diante de nós. Jesus salvou-nos. Fez esta grande oração, o sacrifício da sua vida para nos salvar. Fomos justificados graças a Ele. Agora não está aqui. Mas reza».
Portanto, «Jesus é uma pessoa, é um homem com carne como a nossa, mas na glória. Jesus tem chagas nas mãos, nos pés e no lado. E quando reza mostra ao Pai o preço da justificação e reza por nós. É como se dissesse: Pai, que isto não se perca». Jesus, prosseguiu o Papa Francisco, tem sempre em mente a nossa salvação. E «por isso, quando rezamos dizemos: Por nosso Senhor Jesus Cristo vosso Filho. Porque ele reza primeiro, é o nosso irmão. É homem como nós. Jesus é intercessor».
Na missa celebrada na manhã de 25 de Outubro o Papa chamou a atenção para um dos sacramentos principais da salvação humana, a confissão. Experimentamos a graça da vergonha quando confessamos a Deus o nosso pecado, falando «face a face» com o sacerdote, «nosso irmão». E não pensando em dirigir-nos directamente a Deus, como se fôssemos «confessar-nos por e-mail».
Depois de ter tido a sensação de ser libertado pelo sangue de Cristo e de ser «recriado», são Paulo sente que algo ainda o torna escravo. E na carta aos Romanos (7, 18-25) — recordou o Pontífice — define-se «infeliz». «Ontem, Paulo anunciava a salvação em Jesus Cristo pela fé», e hoje «como irmão descreve aos seus irmãos de Roma a sua luta interior: “Sei que na minha carne não habita o bem”. Há o desejo do bem, mas não a capacidade de o realizar. Não faço o bem que quero, mas o mal que aborreço. E este mal é feito pelo pecado que habita em mim». Ele confessa-se pecador: «Cristo salvou-nos, somos livres. Mas eu sou um pobre pecador, um escravo».
Trata-se da «luta dos cristãos», da nossa luta diária. «Quando quero fazer o bem — explicou o Papa — o mal está ao meu lado! No meu íntimo, digo sim à lei de Deus, mas nos meus membros vejo outra lei, que luta contra a lei da minha razão e me escraviza». E nós «nem sempre temos a coragem de falar como são Paulo sobre esta luta. Procuramos sempre uma justificação: «Somos todos pecadores!». É contra esta atitude que devemos lutar. Aliás, «se não reconhecermos isto — admoestou — não poderemos receber o perdão de Deus, pois se ser pecador é uma palavra, um modo de dizer, não precisamos do perdão divino. Mas se é uma realidade que nos escraviza, temos necessidade desta libertação interior do Senhor».
Durante a missa celebrada na manhã de quinta-feira, 24 de Outubro, o Papa repropôs a atitude com a qual os cristãos devem aproximar-se do mistério da salvação actuada por Jesus. Ao comentar a carta aos Romanos, o Santo Padre fez notar que o apóstolo indica «um caminho para viver conforme a lógica do antes e do depois».
«O que Cristo fez em nós — afirmou ainda o Papa — é uma recriação; o sangue de Cristo nos recriou; é uma segunda criação. E se anteriormente a nossa vida, o nosso corpo, a nossa alma, os nossos hábitos estavam no caminho do pecado, da iniquidade; depois desta recriação devemos fazer o esforço para percorrer no caminho da justiça, da santificação. Paulo utiliza esta palavra: santidade. Todos nós fomos baptizados. Naquele momento — éramos crianças — os nossos pais, em nosso nome, pronunciaram o acto de fé: creio em Jesus Cristo que perdoou os nosso pecados».
Esta fé — exortou o Pontífice — «devemos reassumi-la nós e levá-la em frente com o nosso modo de viver. E viver como cristãos significa levar em frente esta fé em Cristo, esta recriação. Levar em frente as obras que nascem desta fé. O importante é a fé, mas as obras são o fruto desta fé: levar em frente estas obras para a santificação. Eis: a primeira santificação que Cristo fez, a primeira santificação que recebemos no baptismos, deve crescer, deve ir em frente».
Sem esta consciência do antes e do depois, «o nosso cristianismo não serve a ninguém». Aliás, torna-se «hipocrisia: digo a mim mesmo que sou cristão, mas depois vivo como pagão». Se não considerarmos seriamente esta santificação, tornar-nos-emos como os que o Papa definiu «cristãos tíbios».


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